No dia 16 de março de 2022, o presidente norte-americano Joe Biden declarou que o governante russo Vladimir Putin era “um criminoso de guerra”, declaração que o governo da Rússia qualificou como inaceitável e que gerou um desconforto internacional. Biden referia-se aos ataques que ocorriam na Ucrânia, em decorrência da guerra iniciada em 24 de fevereiro do mesmo ano.

Qualificar publicamente outro indivíduo, em especial o líder de uma nação, como um criminoso de guerra pode ser visto como uma grave acusação, uma vez que as noções de crime de guerra, lesa humanidade e genocídio são bastante delicadas e muito bem delimitadas no direito internacional. Nesse sentido, tal acusação, se comprovada, implicaria Vladimir Putin na violação de garantias humanitárias básicas, podendo gerar sanções a ele e à sua nação. No entanto, estabelecer limites e parâmetros dentro dos quais uma guerra possa ser lutada, com o mínimo prejuízo possível aos não militares, foi uma necessidade fundamental, surgida particularmente após a Segunda Guerra Mundial, quando diversas atrocidades foram descobertas e tornou-se necessário regulamentar ainda mais os embates entre as nações.

A Segunda Guerra e o direito internacional

Entre 1939 e 1945, desenvolveu-se a Segunda Guerra Mundial, cuja causa principal reside na conjunção de problemas não resolvidos do primeiro conflito, ocorrido entre 1914 e 1918. Questões como o nacionalismo, a busca por terras na África e na Ásia, os revanchismos, não foram finalizadas ou sequer mencionadas pelo Tratado de Versalhes, assinado em 1919 pelas potências vitoriosas. Esse conjunto de problemas acirrou os ânimos na Alemanha, na Itália e no Japão que, unidos, formaram o Eixo, bloco a desencadear o segundo conflito.

No caso da Alemanha em particular, a humilhação imposta pelo tratado foi elemento essencial para a ascensão do nazismo, doutrina política radical que, além de pregar a guerra enquanto necessidade vital para os alemães, defendia também uma ideia racial profundamente excludente, que levou à perseguição e ao massacre de vários povos, com destaque para os judeus. O extermínio imposto a essa a parcela da população ficou conhecido como Holocausto, e sua completa extensão só foi conhecida após a derrota alemã, o que marcou o final da Segunda Guerra Mundial.

Com o fim do embate, foi necessário estabelecer um tribunal que pudesse julgar os crimes praticados durante o conflito, em especial aqueles que não diziam respeito diretamente ao combate, como as execuções massivas ocorridas dentro dos campos de concentração e de extermínio. Para tanto, logo ao final de 1945, foi instaurado o Tribunal de Nuremberg, cujo principal objetivo era julgar as lideranças nazistas que haviam sobrevivido ao conflito, baseados nos numerosos documentos que haviam restado do governo de Adolf Hitler.

A partir dos crimes ali tornados conhecidos em todo o mundo, a Organização das Nações Unidas (ONU), recém-surgida como substituta à Liga das Nações, estabeleceu, em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos, que apregoa princípios básicos para a sobrevivência digna dos povos ao redor de todo o planeta, garantindo uma série de liberdades para todas as populações. No ano seguinte, na esteira dos acontecimentos derivados da Segunda Guerra, foram aprovadas as Convenções de Genebra, documentos que objetivam proteger todos aqueles que não estão diretamente envolvidos em um conflito, como a população civil, ou aqueles que deixaram de participar do embate, como soldados feridos e prisioneiros. A ideia central é garantir a esses indivíduos que sua dignidade seja respeitada, evitando violações de direitos básicos.

A definição do crime de guerra

Com o conhecimento sobre tal contexto, pode-se definir o crime de guerra como uma violação às normas que regem o desenvolvimento dos conflitos, tal como definido pelas Convenções de Genebra. Por mais que a Carta da ONU, documento que fundamentou seu estabelecimento, busque manter a paz e evitar os conflitos armados, esses acabam por acontecer em virtude de diversas razões, e o que se busca evitar é que ataques militares atinjam e vitimem pessoas que não atuam diretamente no conflito, e que aqueles que já foram incapacitados para a luta possam ter uma sobrevivência digna.

Entretanto, mesmo que desde 1950 a ONU tenha se proposto a preparar um Estatuto do Tribunal Penal Internacional, as discussões a respeito desse tema se arrastaram por décadas, sendo que apenas nos anos 1990 começaram a efetivamente ganhar os mecanismos para coibir os abusos e violações de garantias básicas durante os conflitos.

Os crimes de guerra são listados no artigo 8º do Estatuto de Roma, documento elaborado pela ONU em 1998, e que também criou a Corte Penal Internacional, a qual tem sua sede localizada em Haia, na Holanda. O Estatuto, bem como a Corte Internacional, efetivamente entrou em funcionamento em 2002, quando o número mínimo de 60 países ratificou o acordo. O referido artigo postula que, entre outras situações, configuram crimes de guerra a tortura, o homicídio doloso, o tratamento desumano a presos de combate, a tomada de reféns, o uso de determinados tipos de armas, entre outras ações.

Uma vez que tais atos sejam praticados como parte de um plano de guerra, ou de maneira sistemática durante o conflito, a Corte Penal Internacional pode ser acionada, o que leva aos julgamentos dos envolvidos em tais atos e a sua punição. No entanto, os acusados pelos crimes devem ser entregues ou se entregar à Corte Internacional, uma vez que os julgamentos não acontecem à revelia. Em virtude disso, os processos podem ser extremamente longos e não resultarem efetivamente em penas aos envolvidos na prática de tais crimes.

O Brasil no contexto

O Brasil tem ativamente participado de ações de todas as agências da ONU, tendo sido inclusive membro fundador dessa organização. Da mesma forma, o país ratificou o Estatuto de Roma em 2002, através do decreto 4388, tão logo o documento entrou em vigor. Essa é uma das poucas possibilidades em que, mesmo na atualidade, a Constituição brasileira ainda prevê a pena de morte, vedada em tempos de paz, e apenas para crimes militares.

Apesar da severa punição que pode ser aplicada em caso de crimes de guerra, a política externa brasileira é referência mundial pela histórica neutralidade, com pouquíssimas exceções nos últimos 200 anos. O Brasil tradicionalmente não toma partido diretamente em conflitos internacionais nem mesmo participa das hostilidades, pois sua constituição prevê a igualdade e a independência dos Estados, o que seria contrariado caso o país tomasse uma posição.

A atualidade do tema

Passados quase 80 anos do final da Segunda Guerra Mundial, o planeta não vive um momento pacífico. Apenas no século XXI, dezenas de conflitos surgiram ou ainda se arrastam desde o século passado, causando preocupação com relação às populações civis em particular.

O conflito que se desenvolve em Darfur, no Sudão, a guerra civil síria, a tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão e a guerra entre Rússia e Ucrânia são alguns poucos exemplos de embates que tem acontecido no século XXI e que chamam a atenção internacional pela violência que é estabelecida em tais lugares. Em todos os casos citados, existem inúmeras denúncias de violações aos princípios estabelecidos pelas Convenções de Genebra, o que constitui um conjunto de crimes de guerra que devem ser apurados e julgados pela Corte Penal Internacional, mas é sabido que tais processos serão longos e de difícil punição.

Em todas as situações, o que se percebe é que, após mais de sete décadas de vigência da Declaração Universal de Direitos Humanos, esses ainda não são garantidos a todas as populações no planeta, e que a guerra, mesmo com todas as suas regulamentações, continua a vitimar indivíduos inocentes.

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