Economia circular
O consumo é crescente em todos os países. No Brasil, não é diferente. Em alguns países, o crescimento é acelerado e, em outros, mais lento. Mas, em todos o consumo cresce. O grande problema é que a forma como vivemos deixa marcas no meio ambiente. São as chamadas “pegadas”, que podem ser maiores ou menores, dependendo de quem e de como se caminha.
Um relatório da Circle Economy (2019), grupo apoiado pela ONU Meio Ambiente, aponta que apenas 9% da economia global é circular, o que significa que o planeta reutiliza menos de 10% das 92,8 bilhões de toneladas de minerais, combustíveis fósseis, metais e biomassa usados todos os anos em processos produtivos. E isso tem muito mais a ver com cada um de nós do que se imaginava há alguns anos.
O Relatório da Circle Economy foi divulgado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, realizado em janeiro 2019. O documento destaca o potencial do reaproveitamento e da reciclagem para combater as mudanças climáticas e cumprir o Acordo de Paris, um compromisso internacional discutido entre 195 países com o objetivo de minimizar as consequências do aquecimento global.
O assunto desse texto está relacionado ao impacto das nossas escolhas de consumo, afinal, aquilo que compramos, usamos e descartamos tem uma história que pode impactar mais ou menos o meio ambiente. Antes de mergulhar no tema da Economia Circular, é necessário conhecer um pouco da história do consumo, além de alguns conceitos e práticas que já vem sendo aplicados e que são cada vez mais necessários nesses tempos de escassez de recursos.
Um pouco de história
Até meados do século XVIII, a produção de bens de consumo era feita artesanalmente ou em manufaturas, desta forma, a produção era lenta, pouco intensiva e com baixo volume. Após a Revolução Industrial, devido às inovações tecnológicas, foi possível aumentar a produtividade e o volume total produzido, o que tornou os impactos do processo produtivo no ambiente muito mais intensos.
O modelo de produção predominante desde o fenômeno da industrialização é linear, ou seja, extrai-se a matéria prima, produz-se um bem que é consumido e em seguida descartado. Com isso, há a geração de resíduos e rejeitos e a dissipação de energia ao longo do processo produtivo. Tal modelo de produção pressupõe o uso contínuo de recursos naturais e também se caracteriza pelo descarte acelerado e precoce dos bens consumidos.
Um exemplo disso pôde ser observado recentemente quando, devido às fortes chuvas, o nível do rio Tietê na região da cidade de Salto, interior de São Paulo, subiu muito e ocasionou um acúmulo de garrafas PET. Virou praticamente um rio de garrafas.
Desse exemplo atual, dá para entender que, com o aumento da produção e do consumo, ocorre o aumento da extração de recursos naturais e a consequente deposição de resíduos, provenientes do processo produtivo e também do pós-consumo.
São dois os fatores que fomentam e multiplicam os impactos negativos dos processos produtivos no meio ambiente: o aumento populacional e a intensificação do consumo per capita.
Pegada ecológica
Segundo a Organização Não Governamental WWF-Brasil, a Pegada Ecológica de um país, de uma cidade ou de uma pessoa, corresponde ao tamanho das áreas produtivas de terra e de mar, necessárias para gerar produtos, bens e serviços que sustentam determinados estilos de vida. A Pegada Ecológica é uma forma de traduzir, em hectares (ha), a extensão de território que uma pessoa ou toda uma sociedade “utiliza”, em média, para se sustentar. Isso, quando pensado no modelo da economia linear, aquela em que o padrão é “extrair, produzir e descartar”, vira uma pegada gigantesca.
Segundo a WWF, para calcular a pegada ecológica foi preciso estudar os vários tipos de territórios produtivos (agrícola, pastagens, oceanos, florestas, áreas construídas) e as diversas formas de consumo (alimentação, habitação, energia, bens e serviços, transporte e outros). As tecnologias usadas, os tamanhos das populações e outros dados, também entraram na conta.
Cada tipo de consumo é convertido, por meio de tabelas específicas, em uma área medida em hectares. Além disso, é preciso incluir as áreas usadas para receber os detritos e resíduos gerados e reservar uma quantidade de terra e água para a própria natureza, ou seja, para os animais, as plantas e os ecossistemas onde vivem, garantindo a manutenção da biodiversidade.
A Pegada Ecológica do Brasil é de 2,9 hectares globais por habitante, indicando que o consumo médio de recursos ecológicos do cidadão brasileiro é bem próximo da média mundial (2,7 hectares globais por habitante). Isso significa que se todas as pessoas do planeta consumissem como o brasileiro, seria necessário 1,6 planeta para sustentar esse estilo de vida. A média mundial é de 1,5 planeta. Ou seja, estamos consumindo 50% além da capacidade anual do planeta.
Para evitar um colapso dos recursos naturais que são a nossa fonte de sobrevivência, precisamos avaliar e repensar nossos hábitos de consumo. E adotar uma postura mais responsável, de forma que possamos viver de acordo com a capacidade ecológica do Planeta.
Repensar o consumo
O trabalho do WWF-Brasil com a Pegada Ecológica busca mobilizar e incentivar as pessoas a repensarem hábitos de consumo e a adotarem práticas mais sustentáveis. Desde 2009, a ONG iniciou um trabalho pioneiro no país realizando os cálculos da Pegada Ecológica de Campo Grande (MS) e de São Paulo (Estado e capital). Não por acaso, afinal essas cidades tem muita relação com o aumento do consumo de recursos naturais no país.
O estudo da capital sul-mato-grossense revelou uma Pegada Ecológica de 3,14 hectares globais, o equivalente a 1,7 planeta. Assustador!
No estado de São Paulo, a Pegada Ecológica média foi de 3,52 hectares globais por pessoa (equivalente a dois planetas) e na capital, de 4,38 (2,5 planetas). Em São Paulo, o cálculo foi feito com base nas classes de rendimento familiar e mostrou uma grande diferença. Para os de renda mais alta, ela chegou a quatro planetas.
Os resultados mostram também que a pegada média do acriano é de 2,34 hectares globais per capta, 0,5 hectares globais acima da biocapacidade mundial (1,8gha/cap). Isso significa que, se todas as pessoas do planeta consumissem de forma semelhante aos acrianos, seriam necessários 1,3 planetas para sustentar esse estilo de vida. Embora a Pegada Ecológica do cidadão acriano seja maior que a biocapacidade planetária, ela é 20% menor que a do brasileiro em geral.
Pegada de carbono
A Pegada Ecológica também mede a Pegada de carbono, a qual representa a área terrestre necessária para depósito das emissões de gás carbônico oriundas da queima de combustíveis fósseis e da produção de cimento.
Atualmente, a Pegada de carbono responde por mais da metade da Pegada Ecológica total da humanidade. Trata-se da parte que mais cresce na Pegada. Há uma centena de anos, a Pegada de carbono era uma fração muito pequena de toda a Pegada Ecológica. Desde 1970, nossa Pegada de carbono total mais do que triplicou. Ou seja, estamos emitindo muito mais gás carbônico do que há alguns anos.
A Pegada de carbono da humanidade é a principal causa das mudanças climáticas. Devido ao fato de que geramos emissões de gás carbônico em ritmo muito mais rápido do que é possível absorver, existe um acúmulo desse gás na atmosfera e no oceano.
Reduzir significativamente a Pegada de carbono é um passo essencial para acabar com o abuso ecológico e viver dentro dos limites e meios propiciados pelo planeta. Trata-se, ainda, do passo mais fundamental para conter as mudanças climáticas – resultado mais importante da nossa gastança ecológica em excesso.
Acordo de Paris
O Acordo de Paris foi adotado durante a Conferência das Partes – COP 21, em Paris, no ano de 2015 com o objetivo de incentivar a redução das emissões de gases de efeito estuda.
Isso se resume em manter a temperatura média da Terra abaixo de 2 °C, acima dos níveis pré-industriais. Além de esforços para limitar o aumento da temperatura até 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais.
Os países desenvolvidos também se comprometeram a conceder benefícios financeiros aos países mais pobres, de modo que possam enfrentar as mudanças climáticas. Porém, para que comece a vigorar precisa da ratificação de pelo menos 55 países responsáveis por 55% das emissões de gases de efeito estufa. O Brasil concluiu sua ratificação ao Acordo de Paris em 12 de setembro de 2016. Em documento encaminhado à ONU, as metas brasileiras, na época, eram: reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% abaixo dos níveis de 2005, em 2025; em sucessão, reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% abaixo dos níveis de 2005, em 2030.
Industrialização e consumo
De modo geral, sociedades altamente industrializadas, ou seus cidadãos, “usam” mais espaços do que os membros de culturas ou sociedades menos industrializadas.
Assim, alguns dos componentes da Pegada Ecológica, segundo a WWF, são: carbono, áreas de cultivo, pastagens, florestas, áreas construídas, estoques pesqueiros.
- Carbono
Representa a extensão de áreas florestais capaz de sequestrar emissões de CO2 derivadas da queima de combustíveis fósseis, excluindo-se a parcela absorvida pelos oceanos que provoca a acidificação. - Áreas de cultivo
Representa a extensão de áreas de cultivo usadas para a produção de alimentos e fibras para consumo humano, bem como para a produção de ração para o gado, oleaginosas e borracha. - Pastagens
Representa a extensão de áreas de pastagem utilizadas para a criação de gado de corte e leiteiro e para a produção de couro e produtos de lã. - Florestas
Representa a extensão de áreas florestais necessárias para o fornecimento de produtos madeireiros, celulose e lenha. - Áreas construídas
Representa a extensão de áreas cobertas por infraestrutura humana, inclusive transportes, habitação, estruturas industriais e reservatórios para a geração de energia hidrelétrica. - Estoques pesqueiros
Calculada a partir da estimativa de produção primária necessária para sustentar os peixes e mariscos capturados, com base em dados de captura relativos a espécies marinhas e de água doce.
Ainda segundo a WWF, as pegadas das sociedades industrializadas – ou de seus cidadãos – são maiores pois, ao utilizarem recursos de todas as partes do mundo, afetam locais cada vez mais distan
tes, explorando essas áreas ou causando impactos por conta da geração de resíduos. Como a produção de bens e consumo tem aumentado significativamente, o espaço físico terrestre disponível já não é suficiente para nos sustentar no elevado padrão atual.
Geração de resíduos
Se, atualmente, a população mundial necessita de pelo menos 1,5 planetas para atender às suas necessidades, é certo que as coisas não andam bem para o nosso lado. Todos geramos resíduos, ou seja, descartamos objetos que não nos servem mais. Já pensou para onde eles vão? Já pensou como é feita a gestão dos resíduos na sua cidade?
Hoje, a gestão de resíduos sólidos é um dos desafios no cenário atual de insustentabilidade. Cenário esse em que se intensificam com um modelo de economia linear, em que a produção e o consumo de bens e serviços está acelerando e, com isso, aumenta o descarte de materiais.
Segundo o relatório What a Waste: A Global Review of Solid Waste Management, publicado pelo Banco Mundial (Hoornweg e Bhada-Tata, 2012), a geração de resíduos sólidos urbanos alcança cerca de 1,3 bilhão de toneladas por ano no mundo. As prospecções feitas no relatório preveem que até 2025, a geração de resíduos possa chegar a 2,2 bilhões de toneladas por ano. Desse montante, a maior parte é destinada para aterros sanitários (destinação mais utilizada no mundo), seguida pelos processos de reciclagem, incineração, despejo em lixões e compostagem.
Estas alternativas de destinação são causadoras de diversos impactos ambientais. O aterramento, forma de destinação de resíduos mais antiga, torna-se cada vez mais limitada devido à oferta restrita de espaço, especialmente nas proximidades das grandes concentrações urbanas. Além disso, a produção de chorume e a ausência de tratamento adequado acarretam em significativa poluição dos solos e corpos d’água próximos a esses locais. A incineração também pode trazer diversos problemas ambientais, pois o processo, além emitir gases de efeito estufa (GEE), dioxinas e outros poluentes atmosféricos, permanece gerando resíduos sólidos que demandam destinação.
Muito se tem discutido que as destinações atuais não são capazes de solucionar satisfatoriamente os problemas ambientais relacionados aos resíduos sólidos. É urgente que sejam implementadas alternativas de disposição final, mas opções que considerem o problema dos resíduos de forma sistêmica e que englobem o modelo produtivo como um todo. Uma das soluções que visa a reestruturação do modelo produtivo é a Economia Circular.
Economia circular
A economia circular prevê geração zero de resíduos, uma vez que cada produto se transforma em insumo de outro, tal como ocorre na natureza. Dessa forma, o ciclo de produção se fecha.
O sistema linear que prevê “extrair, produzir e descartar” está se tornando insustentável. É inimaginável pensar na quantidade de recursos que são usados de maneira equivocada, como quando aparece uma novidade e então se descarta aquilo que estava em uso para adquirir o novo, por exemplo. Outro exemplo simples que pode ser pensado a esse respeito são os eletrodomésticos. Imagine se todo mundo resolver trocar de máquina de lavar roupas ao primeiro problema que ela apresentar? Para onde vai tudo isso?
A ideia de que os produtos de hoje se transformam em matéria-prima para a fabricação de novos produtos amanhã faz parte do conceito da economia circular. Mas, pode-se considerar que isso é um pensamento linear em círculos, como acredita Michael Braungart.
Para o criador do conceito do berço ao berço (cradle to cradle), hoje é preciso pensar desde a concepção do produto. Ele cita como exemplo o caso das garrafas PET: quando fabricadas, elas não são pensadas para, após o consumo, serem transformadas novamente em garrafas PET. Depois de fabricadas aos montes, podem até virar outro produto, como é o caso até de roupas feitas a partir delas. Ou de partes de uma vassoura.
Mas, na verdade, o setor produtivo deveria, antes de mais nada, pensar sobre a produção de algo tão efêmero e, ao mesmo tempo, impactante. Visto que esses resíduos, por exemplo, são encontrados aos montes em rios e mares, boiando, poluindo, demorando anos para se decomporem na natureza.
Em vez de ficar sempre batendo na tecla da redução de danos ao meio ambiente, por que não projetar desde o início produtos saudáveis que possam ser reutilizados infinitamente?
Do berço ao berço
Segundo a Ideia Circular, preservar o meio ambiente é urgente e necessário, mas a maneira como isso vem sendo feito está ultrapassada. A linguagem empregada pelos programas de sustentabilidade tradicionais é negativa e insuficiente, ao bater nas teclas da minimização, redução, prevenção e compensação.
O objetivo de quase todos os métodos usuais de proteção ambiental é fazer produtos mais eficientes e, ao mesmo tempo, menos destrutivos. Mas isso não está dando certo – ser menos poluente não é suficiente. Por exemplo: quanto mais modernos ficam os telefones celulares, mais aceleram o consumo de recursos, pois são vendidos aos bilhões. Cada aparelho contém uma média de 41 elementos químicos e nenhum país recicla mais do que nove deles. Todos os metais raros são desperdiçados. É a predominância da lógica “do berço ao túmulo”.
Do berço ao berço tem como objetivo a circulação de todos os materiais como nutrientes, em ciclos biológicos ou técnicos. Produtos de consumo que entram em contato com sistemas naturais, como cosméticos e detergentes, devem ser formulados desde o início, tendo em mente um retorno seguro à biosfera.
Equipamentos contendo elementos raros, não renováveis ou potencialmente tóxicos, por sua vez, devem ser desenhados para reutilização contínua na esfera tecnológica, sem contaminações e sem desvalorização.
Segundo a Ideia Circular, é necessário que haja estímulo a modelos de negócios inovadores, baseados não só na simples venda de manufaturados, mas também na prestação de serviços. Aos fabricantes, vale pensar mais à frente para tirar partido do uso continuado do material de que seu produto é feito. Um design criativo, que se preocupe em recuperar componentes de alto valor, tornando a obsolescência programada uma ideia ultrapassada, é muito interessante.
Redesenhar produtos e sistemas para que sejam saudáveis para os seres humanos e a biosfera não é uma questão de ética, de ser “ecologicamente correto”. É questão de inteligência.
As empresas no contexto
Empresas em todo o mundo estão utilizando o conceito de design do berço ao berço para melhorar as suas receitas e a competitividade de seus produtos. A mesma ideia vem sendo aplicada com frequência na construção de edifícios e áreas urbanas, planejados desde o início para resultar em espaços que beneficiam o meio ambiente e seus usuários.
Segundo a Ideia Circular, o Brasil é pioneiro em algumas tecnologias do tipo do berço ao berço, fato que a maioria dos brasileiros desconhece. Um exemplo é a tecnologia de reciclagem de nutrientes biológicos para o reuso de esgoto – isso mesmo, esgoto – através de biodigestores, desenvolvida nos anos 1990 em colaboração entre o EPEA-Brasil (Cradle to Cradle) e a ONG O Instituto Ambiental.
O sistema de biodigestores, aplicado com sucesso em locais onde não existe saneamento público, recupera o metano presente na decomposição orgânica para produzir gás doméstico, e ainda aproveita o lodo resultante como fertilizante. Além das vantagens econômicas, a água que sobra e vai parar nos rios é bem mais limpa. Essa tecnologia foi exportada com sucesso para o Haiti e a Nicarágua, entre outros países, e deveria ser mais disseminada no Brasil, onde o déficit de saneamento básico é enorme.
Referências
IDEIA CIRCULAR. Relatório sobre economia circular mostra que 91% do que produzimos ainda é descartado. Disponível em: https://ideiacircular.com/relatorio-sobre-economia-circular. Acesso em: 6 jun. 2023.
HOORNWEG, D. What a Waste : A Global Review of Solid Waste Management. Open Knowledge, mar. 2012. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/entities/publication/1a464650-9d7a-58bb-b0ea-33ac4cd1f73c. Acesso em: 6 jun. 2023.
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